sexta-feira, 24 de agosto de 2007

Alucinações.

Eram 19:42 quando bateram à porta. Nunca me esquecerei da data exacta. O meu corpo gelou da cabeça aos pés, pressentindo o impossível. Eu ainda não estava ciente da verdadeira natureza do caminho que tinha seguido, fazia, naquele dia, uma vida. Quem decide, no fim, quem merece ou não vaguear por esta terra de ninguém? Sempre foste uma pessoa muito segura de ti, costumavas falar como se o mundo só fosse bonito por estar por baixo dos teus pés. E, visto de cá, era mesmo essa a ideia que passava, confesso. Nem quando eu dava tudo por tudo para te sentires um bocadinho feia, num exercício raro de contra-argumentação, que detestavas, perdias a compostura. Estavas sempre demasiado bonita para o teu mundo. O que pode e deve ser levado como elogio, ainda que o teu mundo sempre tenha sido negro e enevoado. Até nisso te destacavas, agora que me lembro. Quando as tuas amigas choravam por uma discussão dos pais, tu, enquanto as abraçavas, tentavas saber como evoluía o cancro do teu pai, trocando constantemente mensagens de força com a tua mãe.

Não imaginas a quantidade de pessoas que me diziam que eu não sabia a sorte que tinha. Para teres noção, conseguiram ser mais do que as vezes que me dizias tu isso. Era impossível não gostar de ti. Era uma obrigação, um dever, um privilégio e, acima de tudo, a força que me fazia levantar da cama, todos os dias. Nem que fosse daquelas manhãs em que me obrigavas a ir preparar o pequeno-almoço. E eu que tanto detestava ter de me levantar antes de ti... nunca soubeste porquê e é tão simples. Encarar a cozinha sem ti aterroriza-me.

Agora que entrei no carro sinto-te perfeitamente no banco ao lado, já tem as tuas curvas tatuadas em cada costura e o teu cheiro de tal forma penetrado nos poros que é impossível não entrar lá dentro sem a sensação que alguém mais me faz companhia. O telemóvel com a bateria no fim, como sempre, ansioso por uma mensagem tua, que não chega. Deve estar a estranhar. Ponho o teu CD preferido a dar, tantas músicas que guardámos, não podia ter dado asneira. Disciplinaste-me os gostos, eu que era tão comercial, tu que eras tão alternativa. A juventude tem a mania de adoptar os gostos de Hollywood, quando devia era gostar do que é bom. Eu nem ligava à música, gostava era de ti. Das tuas costas viciadas em mimo e dos teus lábios sedentos de mim a toda a hora. Nunca mais que os meus, dizia-te eu. E rias-te. Rias-te tanto que ás vezes chegava a acreditar que gostavas mesmo de nós. Gostavas de Magnum e salada de tomate, sem sal, porque faz mal. Isto dito com tal sinceridade que só acreditava quem não visse que bebias vinho, um dos mais caros da carta, como sempre. Quando é para estragar, que valha a pena!

Ainda me lembro quando fomos à festa em casa do Pedro. Tudo vestido a rigor, só gente bonita. Acho que quando chegámos tiramos protagonismo ao rapaz. Ficou tudo a olhar, até porque quase ninguém nos conhecia. Se queres que seja sincero, acho que olharam apenas por tua causa, a bomba ali eras tu. Não é que não o saibas, mas fica-me bem e é bom relembrar.

Cheguei, finalmente, raio de trânsito que tu tanto detestavas estava a dar-me cabo da paciência. O hospital estava parado, talvez a indagar nas mil razões que poderiam deixar o meu jantar meio preparado na banca, em stand by. Não eram mil, nem cem, era uma e eras tu. Eu era a única família que te restava, disseram-me uma vez. Nunca senti esse peso, enorme, com tão grande intensidade como hoje. A sala de espera quase vazia. Um ébrio e um sem abrigo, num canto, a dormir em três cadeiras. O meu nome é chamado, por fim. Tudo muito surreal, parecia um sonho, daqueles em que não apetece acordar por puro comodismo.

Fui ao hospital por ir, eu sabia que não ia lá fazer nada. Não era ela que lá estava, isso é mais que certo, ainda ontem tínhamos ido tomar café à esplanada das cadeiras bonitas com vista para o mar, como é que ela podia estar já ali?

Sem grandes demoras, abrem-me a porta do quarto 204. Sorri, estavas ali, calma e bonita, como sempre. Fitavas o tecto como se não pertencesses àquele lugar. Coberta com aqueles lençóis foleiros de hospital. Nem sei como não os enjeitaste, admirei-me. Afinal qual era o alarme? Pego-te na mão e não reages. Estavas fria. Tão fria que nem ousei subir pelo braço. Os lábios, esses lábios que tanto adorei, sempre perfeitos, estavam secos e feios. Não podias ser tu! Uma voz, vinda da porta, diz que não se sabe quem foi o culpado, fugiram. Que as lesões internas não deram qualquer hipótese. Mas o culpado de quê? De ela se ter descuidado com os lábios? Eu saía de batom no bolso mas era sempre ela que o usava. A pele fria? Claro, com estes lençoizitos até eu, que sou acalorado, tinha frio! Chamei-te cinco vezes, baixinho, ao ouvido, como me pedias para te dizer gosto de ti. Anda, vamos para casa... Aconselhavam-me calma e sangue frio. Eu não quero calma, eu quero que ela responda! Que me abrace e volte para casa! É assim tanto? O olhar vazio. O medo e o terror que senti quando te olhei! Foi aí que percebi. Tu não me olhavas. Nem respondias, nem respiravas, nem sorrias. Tinhas fugido. Fugiste porque alguém brincou com a tua vida e fez do perigo refeição.

Como se atrevem a roubar-te de mim? Quem, por direito, se despista em plena auto-estrada, matando a pessoa mais bonita da via e desaparece pelo meio do nevoeiro? As perguntas entalam-se de tal forma que não saem frases, saem palavras balbuciadas sem grande nexo ou contexto.

Diz-me, agora, o que faço eu, sozinho no mundo, perdido de ti! Que maravilhas terá este gigante pedaço de terra que eu não tenha já descoberto contigo? De que vale viajar nele sem ti? Não és tu que estás nesta cama. Tu estavas no meu carro, ao meu lado. Eu senti o teu perfume. Aqui cheira a idosos e comida congelada. Que justiça corre nas veias de Deus para te levar assim para o seu lado?! Que me leve a mim também, sendo assim! Prefiro a incógnita da morte à certeza da desgraça que será o resto da minha vida sem ti. Quando for a um bar, quem vai beber o whiskey com duas pedras de gelo? Eu não sou, não gosto de whiskey! Se ao menos aparecesses nessas alturas tinha a certeza que me embebedaria todo o dia, só para que a tua alucinação me iluminasse a alma, louca de raiva e saudade.

Tinha tantos amo-te guardados para ti... nem imaginas. Ficou tudo por dizer. Não te disse como estavas linda ontem, nem como te ver a acordar hoje foi tão bom ou melhor do que da primeira vez! Não te disse que gostava de ficar chateado com as asneiras que fazias a toda a hora. Não te disse nada! Morreste. Deixaste-me e eu nem te falei. O odor a morte é tão forte que não me dá grande espaço a ideias. Não equaciono uma vida solitária. Tenho de estar contigo, custe o que custar.

Estou admirado de ainda conseguir elaborar frases legíveis, tinha lido algures que o efeito dos comprimidos seria fatal, no máximo, em meia hora, quando tomados em largas proporções. Degluti a caixa inteira. Acho que está na hora de te abraçar. Uma noite sem ti é uma vida desperdiçada.

5 comentários:

Anónimo disse...

sabes aquela sensação que se tem quando se lê (vê ou se ouve) alguma coisa bonita, que te deixa com um sorriso nos lábios e um formigueiro a percorrer o corpo enquanto pensas 'isto fez me ganhar o dia'... estou a senti-la!

e este entra para o meu top de favoritos! you rock!

Unknown disse...

Que fofa :D Obrigado ;P *

Anónimo disse...

Parabéns.

Anónimo disse...

o meu favorito:) faz pensar e repensar,acompanha me nas noites de insonias,de solidao..faz-me sorrir e traz uma lagrimita ao canto do olho..!
Come te disse,torna tudo quase perfeito*

Anónimo disse...

ah,reparei agora no teu perfil 'musica favorita: Smashing-crestfallen'..:D