Foi num dia normal. Como todos os outros. O dia mais normal que se possa imaginar. Nuvens brancas, perdidas no céu azul. Trânsito num frenesim, a lembrar uma orquestra com dois instrumentos, apenas: buzinas e motores. A calçada iluminada pelo sol fraco do fim de tarde, qual tapete vermelho estendido, pronta a ser pisada por ti. Sempre preferi ver-te chegar do que partir, naquele dia não era diferente. Já com o corpo castigado das várias tentativas de arranjar a posição ideal para estar sentado, avisto-te. Caminhar altivo, cabelos ao vento, olhar escondido atrás das lentes escuras. Percorres a calçada com desdém e alcanças-me, por fim. Olá, disparas tu. Um beijo, respondo eu. Das palavras que se seguiram ficaram-me apenas pedaços perdidos, a vaguear na cabeça. Não vou estar com rodeios (...) desculpa (...) não é como antes (...) sair (...). Por outro lado, pelo meio ficou uma frase que crava a nuca de tal forma que a dor que transmite requer muito poder de encaixe: eu já não gosto de ti.
Remato com o detalhe de se estar olhos nos olhos, durante o monólogo. Ouvir isto, assim... é uma experiência de vida que nos faz ganhar uns bons 10 anos, cá dentro. A pancada na cabeça é de tal forma grande que os primeiros segundos são passados a tentar encontrar para onde fugiram as palavras que tinha no vocabulário. Primeiro vem o sentimento de rejeição da realidade, depois o açambarcar da desgraça. A revolta, a ira, o fervilhar. Milhares de palavras - já repostas no vocabulário - prontas a sair da boca. Como são tantas, tendem a atropelarem-se mutuamente. Como é hábito no ser humano, o diálogo é pobre e mal falado. O remoer, analisar situações, ver aspectos contra e a favor... é que já costuma ficar para depois.
O sentimento de incapacidade e desespero, esse... é indescritível.
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Há 3 anos
7 comentários:
De volta estes textos, simples, curtos mas bons. Adoro-os! ;)
Grazie ;)
Muitas palavras, muitas vezes, soam-nos ocas.
Poucas palavras, raras vezes, são capazes de nos fazer sentir como se levámos um murro no estômago, ou apenas a assimilação de algumas palavras (nunca todas) nos tivesse começado a fazer a "mona" fervilhar.
O que nos vale, é o tempo e existir quem nos dê palavras de conforto, nos tire do "mundo a ferver" para um "mundo fresco". Claro que o silêncio, o isolamento que precisámos deve ser respeitado, mas aqueles que realmente nos conhecerem, sabê-lo-ão respeitar e "introduzirem-se" no momento mais oportuno.
Que o momento mais oportuno já tenho chegado há muito, Rui :)*
este teu texto fez-me pensar entre qual das duas coisas que vou dizer será a pior: ouvir um "já não gosto de ti" ou não ouvir nada sequer. nunca ouvi um "já não gosto de ti", pelo menos em que não sentisse e respondesse um "também já não gosto de ti" (:p). no entanto, o silêncio é terrível. é um "já não gosto de ti e nem me dou ao trabalho de to dizer". é uma certeza não declarada, uma dúvida (pco dúvida) que irá pairar sempre, até ao dia em que o tempo apague o que ficou por dizer. até ao dia em que se deixa de esperar uma palavra.
enfim... lol*
- Eu tenho a sorte de ter alguns (na medida certa, nem muitos nem poucos) assim. Sorte, dizem alguns. Eu acho que somos nós que fazemos essa sorte ;)
- Oh, muito pior, pois. E ficar com isso, empancado ali entre a boca e o estômago, tempos sem fim...
wow bone, tou maravilhado
median
Ainda bem :D Nunca pensei que curtisses ;) abraço
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