O
bar nas docas está apinhado de gente. No meio de tantos grupos, um casal de
cara soturna. Uma cabeleira loira, ondulada, esconde um rosto bonito e uns
olhos verdes. Dos lábios finos saem sons infindáveis dos quais apanho apenas o
fim:
-
Faz o que te apetecer, Pedro. Não tenho nada a dizer.
Isto,
depois de um monólogo de uns bons dez minutos, é hilariante.
A
Lara é assim, fala sempre como se fosse a primeira vez que o está a fazer, quem
quiser que a decifre. Mas é com frases sem nexo e atitudes de estudante de
ensino básico que me vai deixando o coração maior, dia após dia.
Chatice
do dia: asfixio-a com expectativas que ela se acha incapaz de concretizar, como
namorada. Ora, uma correcção ali, outra acolá, nunca fez mal a ninguém. Tudo em
termos de sugestão, claro. Agora fazer disso um caso… podia dizer que é
exagero. Mas não, é o costume.
-
Queres fazer de mim a melhor pessoa do mundo! Vê se interiorizas de uma vez por
todas… eu não vou mudar! E depois, já vi pessoas com mais moral do que tu para
me vir com essa conversa.
Já
faltava. Acabámos à sete meses atrás, só faltou disparar-me um tiro, na altura.
Tudo porque andava - e cito - “demasiado amigo de certas pessoas”. Agradeci o
eufemismo, visto que na realidade andava a tomar três cafés por semana com a Maria.
Três cafés são, também, um eufemismo.
-
Não voltes a trazer a Maria para uma conversa, esse assunto já foi mais que
tratado, não? Era boa ideia esquecer estas últimas discussões e fazer um serão
a dois, bem romântico. Sem grandes alaridos, ficar em casa, no sofá, a ver um
filme, enrolados em cobertores a comer chocolate, que achas?
Falei
em chocolate, nunca falha. Começa a arrumar toda a tralha que está espalhada
pela mesa. Chaves, telemóvel, carteira, pulseiras, enfim, tudo o que possa
caber numa bolsa de uma mulher. Ou seja, tudo. Já dei por mim várias vezes a
comparar as bolsas das mulheres a buracos negros. As bolsas são maiores, só
para que conste.
Ziguezagueamos
entre os grupos por ali espalhados, em direcção à saída. Promete ser uma noite
de amor a pairar por todas as divisões da casa. Não as troco por nada deste
mundo. Tal como um café como este nas docas. Desde que ela ande por perto… está
tudo óptimo. No dia em que deixar de me sentir assim, intitulo-me livre. Espero
que esse dia nunca chegue. O amor é uma coisa estranha. Parece que quanto mais
nos verga mais nos embrenhamos nele. Posso afirmar, sem qualquer problema, que
sinto que vou amar a Lara para sempre. E nunca fui grande apoiante do amor
eterno. É mais uma das lavagens cerebrais que sofri.
A
saída a dois passos, falta uma mesa até lá. Três rapazes bem aparentados e bem
dispostos animam duas morenas e uma loira. Esta última está divertidíssima, dando
gargalhadas estridentes. Deduzo que o grupo não esteja sóbrio. Pelo menos a
loira, embora de costas, deduz-se pelo comportamento.
Acredito
que há momentos na vida que estão marcados para que tenhamos um infortúnio. Por
muito que tentemos ficar quietos, ele acontece. Um copo que parte e que acaba
com alguém a cortar-se, uma palavra mal interpretada que acaba em insulto, ou…
um movimento de cabeça de uma loira sentada numa mesa nas docas que origina
contacto visual.
-
Pedro?! Olá!
Mas
que grande merda, uma cara bem conhecida.
-
Err… Olá, Maria…
-
Olha para ti, todo bonito! Quem é a tua amiga? Estou a ver que ainda tens um
fraquinho por loiras!
Queres
uma pá, para tratar da minha cova? Esquece, não precisas, já está cavada.
-
É a minha namorada, chama-se Lara.
-
Namorada? Oh, estou a ver que assim não te posso convidar mais para aqueles
nossos cafezinhos ao fim da tarde.
Ah
bom, faltava colocar corpo na cova, obrigado então! Siga o funeral.
-
Err… É… Depois tratamos disso, um dia. Vá, tenho de ir, adeus!
Ainda
ouço a voz da Maria a dizer “Isso, corre, senão não a apanhas!” e aquela
gargalhada característica. Inconcebível não a ter identificado.
Uns
bons metros à minha frente vai a Lara, com os cabelos a esvoaçar, mais
chateados que ela, e com as botas a bater com força no chão, capazes de impor
respeito a qualquer um. Não sei o que dizer. Nem o que fazer. Pedir desculpa?
Não fiz nada para pedir desculpa. Calo-me, ela que dispare.
-
Desaparece-me da frente!
Podia
ser pior. Será que ainda dá para fazer o serão romântico?
-
O que é que eu podia fazer? Não sabia que ela lá estava!
-
“Bla bla bla, todo bonito, fraquinho por loiras, cafezinhos ao fim da tarde”, –
imita-a ela. Ah, como fica tão querida a gozar com as outras pessoas, mesmo
chateada – mas que raio vem a ser isto? Queres fazer de mim parva em público?
Não quero olhar mais para a tua cara! – E desata a acelerar o passo.
-
Espera! Ao menos deixa-me dar-te boleia para casa!
-
Claro que me tens de dar boleia.
Era
escusado ter ouvido esta.
Convém
lembrar que a Lara pensava que a minha relação com a Maria era puramente
ocasional, – embora embirrasse algo com isso – como dois conhecidos que de vez
em quando se encontram e se falam. E essa era, realmente, a verdade. No entanto
a trela que a Maria sempre deu, fazia com que eu fantasiasse um bocado com ela.
Principalmente naquelas fases menos boas. A miúda sabe falar, divertir-se e,
mais importante, sabe tocar nos pontos certos. Nunca me passou pela cabeça
trair, no entanto não nego que o corpo da Maria tenha um certo impacto em mim. Sempre teve. Em
mim e em toda a gente por onde passa. Ela é daquele tipo de rapariga que faz
com que o passeio agradeça que ela o pise, como se o facto de vaguear pelo
mundo fosse um favor que faz a todos nós. E a facilidade com que escolhe com
quem quer estar como quem escolhe um produto numa loja? Estão todos
disponíveis, é só apontar. Se calhar engraçou comigo por eu não o estar. É o
costume…
Temos
sempre de encalhar nos caminhos mais complicados. Se vemos dificuldades,
estamos lá. Quanto mais inalcançável parece, mais desejo nos desperta. É aquela
velha questão, se é fácil não tem piada, certo? Expliquem-me então que química
é esta, que é que se passa nos segredos do amor que nos faz querer mais quem
nos quer menos. Somos capazes de gastar anos a tentar quebrar o coração de
alguém que constantemente nos dá com os pés, no entanto não aguentamos duas
semanas com alguém que nos idolatre e queira estar connosco a toda a hora. O
segredo é o meio-termo, mas quem é que o atinge? E, melhor: quem é que, depois
de o atingir, o consegue manter? É impossível. Uma relação é uma equação de equilíbrio
constantemente instável, que necessita tanto de problemas como de soluções.
Problemas para a avivar, soluções para a controlar.
Foi
neste (des)equilíbrio que a Maria me encontrou. As coisas com a Lara não eram
as melhores, e se quase sempre estou disposto a dar a vida por ela, às vezes
sou capaz de nem dois cêntimos largar. Apareceu-me do nada, numa noite, num
bar:
-
Chamas-te Pedro, não é? És amigo do Rodrigo!
Sou
sim, Barbie, e tu, serás um potencial
depósito de fluidos? É claro que já sabia quem ela era, um mulherão daqueles
não é anónimo para ninguém.
-
Rodrigo? De onde é que conheces aquela cara feia do Rodrigo?!
-
Sou amiga de infância! – Oh, que surpresa. Até que enfim que te apresentas.
-
Ah, bom! Estamos em sintonia então, acabas de conhecer o amigo mais bonito
dele, muito prazer em conhecer a mais bonita, Maria. – Respondo-lhe,
presunçoso, arrancando-lhe uma risada igual à que ouvi no bar das docas. Assim
nasceu a nossa amizade, o típico caso amiga de um amigo. Ela engraçou comigo
desde o início, estávamos os dois bem dispostos naquela noite. Tudo entre
pessoal conhecido fica mais fácil. Fomos os reis das discussões, fizemos rir
tudo à nossa volta. Lembro-me de estar tão feliz que desejei ter a Lara ao meu
lado, para ver se acordávamos da monotonia em que tínhamos mergulhado. Mas só
lá estava a Maria.
O
Rodrigo acabou a noite a dizer-me para a levar para casa, mas eu queria era ver
se apanhava ainda a Lara acordada, quanto mais não fosse para lhe dar o beijo
de boa noite na bochecha e pentear-lhe o cabelo.
Depois
da ruptura da nossa relação, aos tais sete meses atrás, senti-me completamente
abandonado. Daí as minhas várias tentativas para voltarmos a ter algo em
conjunto – refutadas, logo sem qualquer hipótese. Fui vítima de opiniões
precipitadas, a Maria era alguém com quem me dava bem, viam-nos juntos, e uma
rapariga assim – perfeita à vista - dá sempre azo a bastantes interpretações.
Chegou à Lara em pouco tempo. Se a nossa relação andava afundada em monotonia,
passou do oito ao oitenta. Por tudo e por nada surgiam insinuações sobre onde
eu pudesse ter estado, ou onde poderia ir. E se antes a Maria era mais uma
pessoa com quem ela não engraçava muito, passou a inimiga número um.
Transformou um estado de ataraxia quase insuportável para um exasperante estado
de paranóia. Precisávamos de umas férias, por um longo período.
Arrependi-me
no dia seguinte, mas ela tão cedo não voltou atrás. Fechou-me a porta na cara
com um querido “Estás livre para ir comer aquela tua amiga, nunca mais cá
voltes!”. Voltei vezes sem conta, tantas quantas bati com a cara na porta.
Bem…
escorraçado, indesejado e sozinho, quem é que resiste à Maria nestas
circunstâncias? Eu não.
Foram
tempos loucos. Vivíamos mais de noite do que de dia. O sexo era incrível, foi
como reviver as sensações esquecidas do sabor de uma boa estocada. Era completamente
doida no que tocava à cama. Alinhava em tudo e queria sempre mais. E quando
digo sempre, é mesmo verdade! Não me lembro de ir para cima dela e não lhe
apetecer. Já o contrário… era o ritual. Não há pila que aguente, coitado de
quem namorar com ela. Sempre dei o máximo mas todos temos um limite. E eu que
sempre pensei aguentar-me bem, chego ali, parecia um virgem assustado nas mãos
de uma profissional.
Há-de
chegar o dia em que as mulheres pagarão por não serem elas a carregarem entre
as pernas o factor mais importante no que toca tanto à existência como ao
prolongamento do acto sexual. É fácil para quem não tem que levantar um rolo de
carne sem as mãos pedir outra. Tão fácil que por vocês o faziam a noite toda. E
fazê-lo sempre na posição de missionário? E no fim pedir um café, também, não?
Ainda dizem que nós somos malandros no que toca à lide caseira. Pudera,
compensamos - e bem, diga-se - na altura da verdade!
Cheguei
a equacionar a hipótese de me juntar à Maria mas tal nunca iria resultar,
gostava da Lara, sempre gostei, ia enganar-me a mim próprio e a ela. De
qualquer forma fui-me aguentando por uns tempos. O suficiente até me sentir longe
do que sou, até me despertar o relógio da consciência que dispara sempre que
sente que algo não está bem.
Certo
dia comecei a escrever sobre o meu estado de espírito. Quando dei por mim tinha
enchido quatro páginas de euforia desmedida e futilidades. Nem uma única
palavra afectuosa para com a Maria. Que estava eu a fazer com ela, na verdade?
Eu não estava bem. Não era aquele Pedro desvairado que a Lara admirava. Aquele
sorriso que me andava estampado na face não era mais do que uma tampa para o
fosso do meu interior. Foi esse o estalo sem mão que levei, na hora. Se
continuasse assim, a Lara nunca me quereria. Geralmente funciona assim,
interiorizo que não há maneira possível de voltar a tê-la, depois de tudo.
Tento esquecê-la com quem mais me entreter, até ao dia em que haja o mínimo
sinal de fraqueza por parte dela. Aí, viro cachorro e nunca mais me apanham
fora do trilho. Mas, ei, será que não é possível recuperá-la sem pressentir uma
cedência de parte dela? Serei assim tão fraco? Seremos assim tão frágeis?
Se
realmente a quisesse – e sempre a quis, mais do que tudo -, tinha de mudar,
radicalmente. Tinha de a saber reconquistar, como fizera à anos atrás, ainda
miúdos. Mais uma vez.
De
tantas vezes ter batido à porta de casa dela, cheguei a ter os nós dos dedos bastante
pisados, constantemente. Isto, até ao dia em que decidi usar a cabeça…
literalmente. Também a pisei. Apenas depois lhe dei o devido uso, agora sim,
metaforicamente.
Rabisquei
um pedido de desculpas num papel, perfumei-o com uma fragrância que me tinha
sido oferecida por ela, – amorosa, por sinal – e deixei-o enrolado no caule de
uma rosa, no correio de casa dela. Escrevi em todas as pétalas o nome Lara, só
para que não houvesse engano no destinatário. Levei um coração com autocolante
e coloquei-o na chapa do correio, selando-a. Por baixo, escrevi, a giz, Rasga-me o coração, mais uma vez. Hoje vai
valer a pena. Fui embora, certo de que a reacção seria a do costume. Mas
conseguiria parar de tentar, algum dia? Nunca soube. Ainda hoje é o dia em que
não sei.
Não
sei como reagiu, na altura. Se barafustou de raiva, se sorriu ou se,
simplesmente, ignorou mais um grito em surdina que lhe enviara.
Sei,
isso sim, o que estava escrito naquele papel.
Meti mais um cobertor
na cama. Tinha frio. Por mais que me enrolasse para dormir nunca estava bem. Estou
a fazer uma playlist daquelas
músicas que tanto gostas para ouvi-las uma a uma. Ainda falta qualquer coisa.
Não tenho fotos tuas
nas paredes, mas o teu nome ocupa as quatro, de cima a baixo. Fecho os olhos e
sorris, com aquele sorriso parvo que me apaixona. Já é tarde, deduzo que não
saias tão cedo. Muito menos com esse sorriso. Também não faço grande esforço.
Pinto o fundo de
violeta e coloco-te no centro, nua. Detestas violeta, eu sei, mas sempre achei
que te ficaria bem. Aliás, tudo te fica bem.
Ouço sempre o teu característico
raio de cama minúscula, gosto de dormir à larga.
Eu não me importo, quanto menos espaço para nós, mais nos enroscamos. Há algo
melhor que adormecer nos braços de alguém? Reparo: há algo melhor que adormecer
nos teus braços? Há. Adormeceres tu nos meus. Nem com bebés teria tanto
cuidado. Ver-te dormir ilumina-me, sentir o teu respirar leva-me a lugares que
nem sei definir. Lugares pintados por ti, mesmo sem o saberes, dignos de
exposições em galerias famosas. Era desses lugares que caía, abruptamente,
quando, de manhã, saías de mansinho. Lembro-me dos braços leves com que ficava,
do espaço enorme, dos lençóis todos meus. E do frio. O frio que ficou da última
vez que saíste e que teima em nunca mais ir embora. Já percebi, Lara. Por
muitos cobertores que meta naquela cama, ela vai sempre parecer-me gelada,
porque o frio não se manifesta no meu corpo nem passa pelos lençóis, ele está
sentado no meu coração, em greve por te ter visto partir. Volta rápido, é a
cama que está a pedir.
Beijo no cabelo,
Pedro