sábado, 3 de novembro de 2012

Noites Difíceis - Volume 1 - Prefácio


O bar nas docas está apinhado de gente. No meio de tantos grupos, um casal de cara soturna. Uma cabeleira loira, ondulada, esconde um rosto bonito e uns olhos verdes. Dos lábios finos saem sons infindáveis dos quais apanho apenas o fim:
- Faz o que te apetecer, Pedro. Não tenho nada a dizer.
Isto, depois de um monólogo de uns bons dez minutos, é hilariante.
A Lara é assim, fala sempre como se fosse a primeira vez que o está a fazer, quem quiser que a decifre. Mas é com frases sem nexo e atitudes de estudante de ensino básico que me vai deixando o coração maior, dia após dia.
Chatice do dia: asfixio-a com expectativas que ela se acha incapaz de concretizar, como namorada. Ora, uma correcção ali, outra acolá, nunca fez mal a ninguém. Tudo em termos de sugestão, claro. Agora fazer disso um caso… podia dizer que é exagero. Mas não, é o costume.
- Queres fazer de mim a melhor pessoa do mundo! Vê se interiorizas de uma vez por todas… eu não vou mudar! E depois, já vi pessoas com mais moral do que tu para me vir com essa conversa.
Já faltava. Acabámos à sete meses atrás, só faltou disparar-me um tiro, na altura. Tudo porque andava - e cito - “demasiado amigo de certas pessoas”. Agradeci o eufemismo, visto que na realidade andava a tomar três cafés por semana com a Maria. Três cafés são, também, um eufemismo.
- Não voltes a trazer a Maria para uma conversa, esse assunto já foi mais que tratado, não? Era boa ideia esquecer estas últimas discussões e fazer um serão a dois, bem romântico. Sem grandes alaridos, ficar em casa, no sofá, a ver um filme, enrolados em cobertores a comer chocolate, que achas?
Falei em chocolate, nunca falha. Começa a arrumar toda a tralha que está espalhada pela mesa. Chaves, telemóvel, carteira, pulseiras, enfim, tudo o que possa caber numa bolsa de uma mulher. Ou seja, tudo. Já dei por mim várias vezes a comparar as bolsas das mulheres a buracos negros. As bolsas são maiores, só para que conste.
Ziguezagueamos entre os grupos por ali espalhados, em direcção à saída. Promete ser uma noite de amor a pairar por todas as divisões da casa. Não as troco por nada deste mundo. Tal como um café como este nas docas. Desde que ela ande por perto… está tudo óptimo. No dia em que deixar de me sentir assim, intitulo-me livre. Espero que esse dia nunca chegue. O amor é uma coisa estranha. Parece que quanto mais nos verga mais nos embrenhamos nele. Posso afirmar, sem qualquer problema, que sinto que vou amar a Lara para sempre. E nunca fui grande apoiante do amor eterno. É mais uma das lavagens cerebrais que sofri.
A saída a dois passos, falta uma mesa até lá. Três rapazes bem aparentados e bem dispostos animam duas morenas e uma loira. Esta última está divertidíssima, dando gargalhadas estridentes. Deduzo que o grupo não esteja sóbrio. Pelo menos a loira, embora de costas, deduz-se pelo comportamento.
Acredito que há momentos na vida que estão marcados para que tenhamos um infortúnio. Por muito que tentemos ficar quietos, ele acontece. Um copo que parte e que acaba com alguém a cortar-se, uma palavra mal interpretada que acaba em insulto, ou… um movimento de cabeça de uma loira sentada numa mesa nas docas que origina contacto visual.
- Pedro?! Olá!
Mas que grande merda, uma cara bem conhecida.
- Err… Olá, Maria…
- Olha para ti, todo bonito! Quem é a tua amiga? Estou a ver que ainda tens um fraquinho por loiras!
Queres uma pá, para tratar da minha cova? Esquece, não precisas, já está cavada.
- É a minha namorada, chama-se Lara.
- Namorada? Oh, estou a ver que assim não te posso convidar mais para aqueles nossos cafezinhos ao fim da tarde.
Ah bom, faltava colocar corpo na cova, obrigado então! Siga o funeral.
- Err… É… Depois tratamos disso, um dia. Vá, tenho de ir, adeus!
Ainda ouço a voz da Maria a dizer “Isso, corre, senão não a apanhas!” e aquela gargalhada característica. Inconcebível não a ter identificado.
Uns bons metros à minha frente vai a Lara, com os cabelos a esvoaçar, mais chateados que ela, e com as botas a bater com força no chão, capazes de impor respeito a qualquer um. Não sei o que dizer. Nem o que fazer. Pedir desculpa? Não fiz nada para pedir desculpa. Calo-me, ela que dispare.
- Desaparece-me da frente!
Podia ser pior. Será que ainda dá para fazer o serão romântico?
- O que é que eu podia fazer? Não sabia que ela lá estava!
- “Bla bla bla, todo bonito, fraquinho por loiras, cafezinhos ao fim da tarde”, – imita-a ela. Ah, como fica tão querida a gozar com as outras pessoas, mesmo chateada – mas que raio vem a ser isto? Queres fazer de mim parva em público? Não quero olhar mais para a tua cara! – E desata a acelerar o passo.
- Espera! Ao menos deixa-me dar-te boleia para casa!
- Claro que me tens de dar boleia.
Era escusado ter ouvido esta.
Convém lembrar que a Lara pensava que a minha relação com a Maria era puramente ocasional, – embora embirrasse algo com isso – como dois conhecidos que de vez em quando se encontram e se falam. E essa era, realmente, a verdade. No entanto a trela que a Maria sempre deu, fazia com que eu fantasiasse um bocado com ela. Principalmente naquelas fases menos boas. A miúda sabe falar, divertir-se e, mais importante, sabe tocar nos pontos certos. Nunca me passou pela cabeça trair, no entanto não nego que o corpo da Maria tenha um certo impacto em mim. Sempre teve. Em mim e em toda a gente por onde passa. Ela é daquele tipo de rapariga que faz com que o passeio agradeça que ela o pise, como se o facto de vaguear pelo mundo fosse um favor que faz a todos nós. E a facilidade com que escolhe com quem quer estar como quem escolhe um produto numa loja? Estão todos disponíveis, é só apontar. Se calhar engraçou comigo por eu não o estar. É o costume…
Temos sempre de encalhar nos caminhos mais complicados. Se vemos dificuldades, estamos lá. Quanto mais inalcançável parece, mais desejo nos desperta. É aquela velha questão, se é fácil não tem piada, certo? Expliquem-me então que química é esta, que é que se passa nos segredos do amor que nos faz querer mais quem nos quer menos. Somos capazes de gastar anos a tentar quebrar o coração de alguém que constantemente nos dá com os pés, no entanto não aguentamos duas semanas com alguém que nos idolatre e queira estar connosco a toda a hora. O segredo é o meio-termo, mas quem é que o atinge? E, melhor: quem é que, depois de o atingir, o consegue manter? É impossível. Uma relação é uma equação de equilíbrio constantemente instável, que necessita tanto de problemas como de soluções. Problemas para a avivar, soluções para a controlar.
Foi neste (des)equilíbrio que a Maria me encontrou. As coisas com a Lara não eram as melhores, e se quase sempre estou disposto a dar a vida por ela, às vezes sou capaz de nem dois cêntimos largar. Apareceu-me do nada, numa noite, num bar:
- Chamas-te Pedro, não é? És amigo do Rodrigo!
Sou sim, Barbie, e tu, serás um potencial depósito de fluidos? É claro que já sabia quem ela era, um mulherão daqueles não é anónimo para ninguém.
- Rodrigo? De onde é que conheces aquela cara feia do Rodrigo?!
- Sou amiga de infância! – Oh, que surpresa. Até que enfim que te apresentas.
- Ah, bom! Estamos em sintonia então, acabas de conhecer o amigo mais bonito dele, muito prazer em conhecer a mais bonita, Maria. – Respondo-lhe, presunçoso, arrancando-lhe uma risada igual à que ouvi no bar das docas. Assim nasceu a nossa amizade, o típico caso amiga de um amigo. Ela engraçou comigo desde o início, estávamos os dois bem dispostos naquela noite. Tudo entre pessoal conhecido fica mais fácil. Fomos os reis das discussões, fizemos rir tudo à nossa volta. Lembro-me de estar tão feliz que desejei ter a Lara ao meu lado, para ver se acordávamos da monotonia em que tínhamos mergulhado. Mas só lá estava a Maria.
O Rodrigo acabou a noite a dizer-me para a levar para casa, mas eu queria era ver se apanhava ainda a Lara acordada, quanto mais não fosse para lhe dar o beijo de boa noite na bochecha e pentear-lhe o cabelo.

Depois da ruptura da nossa relação, aos tais sete meses atrás, senti-me completamente abandonado. Daí as minhas várias tentativas para voltarmos a ter algo em conjunto – refutadas, logo sem qualquer hipótese. Fui vítima de opiniões precipitadas, a Maria era alguém com quem me dava bem, viam-nos juntos, e uma rapariga assim – perfeita à vista - dá sempre azo a bastantes interpretações. Chegou à Lara em pouco tempo. Se a nossa relação andava afundada em monotonia, passou do oito ao oitenta. Por tudo e por nada surgiam insinuações sobre onde eu pudesse ter estado, ou onde poderia ir. E se antes a Maria era mais uma pessoa com quem ela não engraçava muito, passou a inimiga número um. Transformou um estado de ataraxia quase insuportável para um exasperante estado de paranóia. Precisávamos de umas férias, por um longo período.
Arrependi-me no dia seguinte, mas ela tão cedo não voltou atrás. Fechou-me a porta na cara com um querido “Estás livre para ir comer aquela tua amiga, nunca mais cá voltes!”. Voltei vezes sem conta, tantas quantas bati com a cara na porta.
Bem… escorraçado, indesejado e sozinho, quem é que resiste à Maria nestas circunstâncias? Eu não.

Foram tempos loucos. Vivíamos mais de noite do que de dia. O sexo era incrível, foi como reviver as sensações esquecidas do sabor de uma boa estocada. Era completamente doida no que tocava à cama. Alinhava em tudo e queria sempre mais. E quando digo sempre, é mesmo verdade! Não me lembro de ir para cima dela e não lhe apetecer. Já o contrário… era o ritual. Não há pila que aguente, coitado de quem namorar com ela. Sempre dei o máximo mas todos temos um limite. E eu que sempre pensei aguentar-me bem, chego ali, parecia um virgem assustado nas mãos de uma profissional.
Há-de chegar o dia em que as mulheres pagarão por não serem elas a carregarem entre as pernas o factor mais importante no que toca tanto à existência como ao prolongamento do acto sexual. É fácil para quem não tem que levantar um rolo de carne sem as mãos pedir outra. Tão fácil que por vocês o faziam a noite toda. E fazê-lo sempre na posição de missionário? E no fim pedir um café, também, não? Ainda dizem que nós somos malandros no que toca à lide caseira. Pudera, compensamos - e bem, diga-se - na altura da verdade!
Cheguei a equacionar a hipótese de me juntar à Maria mas tal nunca iria resultar, gostava da Lara, sempre gostei, ia enganar-me a mim próprio e a ela. De qualquer forma fui-me aguentando por uns tempos. O suficiente até me sentir longe do que sou, até me despertar o relógio da consciência que dispara sempre que sente que algo não está bem.
Certo dia comecei a escrever sobre o meu estado de espírito. Quando dei por mim tinha enchido quatro páginas de euforia desmedida e futilidades. Nem uma única palavra afectuosa para com a Maria. Que estava eu a fazer com ela, na verdade? Eu não estava bem. Não era aquele Pedro desvairado que a Lara admirava. Aquele sorriso que me andava estampado na face não era mais do que uma tampa para o fosso do meu interior. Foi esse o estalo sem mão que levei, na hora. Se continuasse assim, a Lara nunca me quereria. Geralmente funciona assim, interiorizo que não há maneira possível de voltar a tê-la, depois de tudo. Tento esquecê-la com quem mais me entreter, até ao dia em que haja o mínimo sinal de fraqueza por parte dela. Aí, viro cachorro e nunca mais me apanham fora do trilho. Mas, ei, será que não é possível recuperá-la sem pressentir uma cedência de parte dela? Serei assim tão fraco? Seremos assim tão frágeis?
Se realmente a quisesse – e sempre a quis, mais do que tudo -, tinha de mudar, radicalmente. Tinha de a saber reconquistar, como fizera à anos atrás, ainda miúdos. Mais uma vez.

De tantas vezes ter batido à porta de casa dela, cheguei a ter os nós dos dedos bastante pisados, constantemente. Isto, até ao dia em que decidi usar a cabeça… literalmente. Também a pisei. Apenas depois lhe dei o devido uso, agora sim, metaforicamente.
Rabisquei um pedido de desculpas num papel, perfumei-o com uma fragrância que me tinha sido oferecida por ela, – amorosa, por sinal – e deixei-o enrolado no caule de uma rosa, no correio de casa dela. Escrevi em todas as pétalas o nome Lara, só para que não houvesse engano no destinatário. Levei um coração com autocolante e coloquei-o na chapa do correio, selando-a. Por baixo, escrevi, a giz, Rasga-me o coração, mais uma vez. Hoje vai valer a pena. Fui embora, certo de que a reacção seria a do costume. Mas conseguiria parar de tentar, algum dia? Nunca soube. Ainda hoje é o dia em que não sei.
Não sei como reagiu, na altura. Se barafustou de raiva, se sorriu ou se, simplesmente, ignorou mais um grito em surdina que lhe enviara.
Sei, isso sim, o que estava escrito naquele papel.

Meti mais um cobertor na cama. Tinha frio. Por mais que me enrolasse para dormir nunca estava bem. Estou a fazer uma playlist daquelas músicas que tanto gostas para ouvi-las uma a uma. Ainda falta qualquer coisa.
Não tenho fotos tuas nas paredes, mas o teu nome ocupa as quatro, de cima a baixo. Fecho os olhos e sorris, com aquele sorriso parvo que me apaixona. Já é tarde, deduzo que não saias tão cedo. Muito menos com esse sorriso. Também não faço grande esforço.
Pinto o fundo de violeta e coloco-te no centro, nua. Detestas violeta, eu sei, mas sempre achei que te ficaria bem. Aliás, tudo te fica bem.
Ouço sempre o teu característico raio de cama minúscula, gosto de dormir à larga. Eu não me importo, quanto menos espaço para nós, mais nos enroscamos. Há algo melhor que adormecer nos braços de alguém? Reparo: há algo melhor que adormecer nos teus braços? Há. Adormeceres tu nos meus. Nem com bebés teria tanto cuidado. Ver-te dormir ilumina-me, sentir o teu respirar leva-me a lugares que nem sei definir. Lugares pintados por ti, mesmo sem o saberes, dignos de exposições em galerias famosas. Era desses lugares que caía, abruptamente, quando, de manhã, saías de mansinho. Lembro-me dos braços leves com que ficava, do espaço enorme, dos lençóis todos meus. E do frio. O frio que ficou da última vez que saíste e que teima em nunca mais ir embora. Já percebi, Lara. Por muitos cobertores que meta naquela cama, ela vai sempre parecer-me gelada, porque o frio não se manifesta no meu corpo nem passa pelos lençóis, ele está sentado no meu coração, em greve por te ter visto partir. Volta rápido, é a cama que está a pedir.

Beijo no cabelo,
Pedro